quarta-feira, 30 de junho de 2010

CERTA SENSAÇÃO



Gerana Damulakis

A minha amiga Ângela Vilma, poeta e prosadora de primeiríssima, conversava comigo e, entre vários assuntos literários, chegamos, já não sei como, a um ponto interessante: a sensação causada por certos poemas, sensação esquisita; não sabemos precisar a razão exata que detona tal, digamos, estupefação, ou estranheza.

Com Ângela Vilma, a sensação é causada pelo verso "-Antônia, você parece uma lagarta listada", do poema "Namorados", de Manuel Bandeira, que está no livro Libertinagem. O meu exemplo é o verso "uma noiva verde", do poema "Quero me casar", do volume Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, que costumo associar à sensação causada pelos versos do "Poema de sete faces", do mesmo livro de 1930: "O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração./ Porém meus olhos/ não perguntam nada."

Enfim, conversa de quem é apaixonado por poesia. Ao fim e ao cabo, a leitura dos poemas sempre vale a pena. E você? Conte-me se entende a sensação que Ângela e eu sentimos.



NAMORADOS
-----------------Manuel Bandeira

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
-Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
-Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?
A moça se lembrava:
-A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
-Antônia, você parece uma lagarta listada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
-Antônia, você é engraçada! Você parece louca.


QUERO ME CASAR
--------------Carlos Drummond de Andrade

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!

31 comentários:

Lidi disse...

Oi, Gerana, teu blog está lindo de roupa nova! Já senti essa estranheza muitas vezes, mas não lembro de um verso agora. Quando lembrar, volto aqui. Obrigada pelo comentário em meu blog, também estou com saudades e espero te ver em breve. Um beijo.

Lisarda disse...

O misterio, a sensação, o inefável, a memoria soterrada, o tempo...o misterio do amor no percurso do tempo, a sensação que acorda por um poema, um poema que soterra sensaçoes...o diálogo que traza os roteiros dos signos...o diálogo das memorias...(continuará)

João Renato disse...

Oi, Gerana,
Que eu me lembre agora, eu tenho uma sensação estranha com o verso:
"Um dia mão estúpida"
Do poema Gesso, de Manuel Bandeira (que eu adoro).
JR.

cduxa disse...

Olá Gerana
As palavras, as palavras.
Algumas crianças falam assim, o conceito lagarta não é depreciativo para uma criança, no coração de um poeta a visão das coisas pode ter uma similitude.Um surrealismo/nonsense poético,(mas marcadamente masculino).
Encontramo-nos por aqui.
Um xi,
cduxa

Tania regina Contreiras disse...

Entendo, sim, Gerana do que falam... Não sei se a palavra que melhor traduz, em mim, essa sensação seja de fato "estranheza"...não sei...Mas há elementos na poesia de alguns que parecem querer quebrar padrões no olhar, é o inusitado que surge, assim como a lagarta listada e a noiva verde. Já me deparei com isso, não lembraria agora um exemplo, mas sim, claro que já.

Beijão,
Tânia

Unknown disse...

Contemplação e espanto eis o mister da poesia,

abraço

aeronauta disse...

Oi, Gerana, realmente o "noiva verde" é algo que causa um incômodo mesmo. O caso de Antonia (vide Bandeira) está se dissipando, como eu te disse, ao ouvir a própria voz do poeta recitando - algo que esclarece muito trechos de poema que nos incomodam de alguma maneira. Abraços, Ângela Vilma.

aeronauta disse...

Oi, o "poeta e prosadora de primeiríssima" vindo de você, é uma grande homenagem. Obrigada.

Gisele Freire disse...

Adoro os dois!
Ge, essa template foi feita pra vc, é mesmo a tua cara :)
Livros e livros na estante!
Tá lindo aqui, lindo mesmo!
bjin e bom dia pra ti:)
Gi

Bípede Falante disse...

Um viva aos amores que nos fazem parecer loucas e engraçadas :)

Anônimo disse...

Excessos do tempo do Modernismo.
Prado

Anônimo disse...

Pôxa, nunca senti isso. :(

Ana Tapadas disse...

Formidáveis poetas!
Noiva verde é coisa estranha, desencontro das palavras criando significância...
Beijo





(Força Brasil!
Bem...gosto tanto de Messi, ups!)

silvia zappia disse...

qué bonitos estos poemas!

bueno,creo que el efecto que producen los versos se debe a la aliteración que los respectivos poetas usaron para, precisamente, llamarnos la atención.Los poetas lograron su cometido, la sensación de "extrañeza"(esquisito, dicen ustedes?).Esto en cuanto a la técnica.
A mí, personalmente, el verso de la lagarta listada me produjo rareza, risa y ternurna.
El segundo, noiva verde, me trajo frescura, olor a campo.

Y es Octavio Paz que dice que la poesía debe ser "un ejército de sables, un lenguaje de relámpagos...")para así conmover.


mil besos,Gerana*
(siempre es un placer visitarte)

Nilson Barcelli disse...

Uma interessante visão da poesia.
Fez-me lembrar quando eu escrevi que era bombeiro incendiário...
Beijos.

Anônimo disse...

Lagartixa, noiva verde e vocês sentem "estranheza"? "Estranheza" é eufemismo, vocês sentem algo perto do nojo, algo nada poético, algo - concordo com o Prado - típico das primeiras horas do Modernismo, quando tudo podia ser poesia.
Fátima

O Neto do Herculano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
O Neto do Herculano disse...

Quando eu era moleque, estranhava "Os Gatos da Tinturaria", de Cecilia, mas hoje nem tanto.

gláucia lemos disse...

Seu texto sobre versos que impressionaram me fez recordar o verso que primeiro me impressionou. Foi na infância, havia um canto que fazíamos no canto orfeônico do meu colégio, era uma música do folclore, na qual havia um trecho que cantava assim "o céu forrado de veludo azul-marinho"... O verso me encantou porq entendi a metáfora e achei tão inteligente o autor falar do ceu escuro da noite como forrado de veludo azul-marinho. Lembro-me de que pensei como o autor tinha sido INTELIGENTE.Eu tinha uns 10 anos, nunca esqueci.

Jefferson Bessa disse...

lembrei dos versos de Eugénio de Andrade que li há poucos dias:

"O azul, o azul rouco, o azul
sem cor, luz gémea da sede"

O que mais estranhei foi "azul rouco".
Um beijo, Gerana!

Valéria Martins disse...

Hahaha... Poderia fazer minhas as palavras do Carlos... Mas em vez de noiva, um noivo. Será?

Tem um poema dele sobre as coisas que ficam fechadas atrás das portas, e que não podemos ver. A vida das coisas longe dos olhos da gente. Eu escrevi no blog sobre esse poema, porque é uma "viagem" tão sofisticada! Maravilhoso Drummond.

Beijos, Gerana!

Juan Moravagine Carneiro disse...

Ambos os poemas muito bons...confesso que ainda nõa os conhecia...

Um outro poema que mudou minha vida é Tabacaria do Fernando Pessoa...

Do nada me pego pensando nele...é muito estranho...parece que ele tem vida!

abraço

Unknown disse...

Bacana, vou tentar lembrar algo, mas assim de chofre, nunca me conformei de Jesus sacrificar a figueira. Enfim, não é um poema, mas me dá uma sensação estranha.

beijos querida..... tô meio quieta

ah, antes que me passe de novo, gostei do novo fundo...te imagino mesma cercada de livros e retratos.

M. disse...

Aquele poema de Quintana que ele dedica a Drumond, "Carta desesperada", tem um verso que me deixa estupefata, porque - para mim - é algo totalmente inesperado: "Sabes, Beatriz? Eu vou morrer". Eu amo.

Caio Rudá de Oliveira disse...

A noiva verde é uma coisa estranha mesmo. Ainda de Drummond, tem todo um poema que dá essa sensação de esquisitice: Canção da moça-fantasma.

Nilson disse...

Estranhamento não sei, mas sempre me surpreende o "Esteves sem metafísica", dessa Tabacaria de Pessoa, lembrada por Juan. Sei lá por quê!

gláucia lemos disse...

A noiva VERDE desde que li não estranhei porque interpretei não como uma noiva de cor verde, sim como uma noiva novinha, que ainda não era uma mulher MADURA. Sabe-se lá...

Marcantonio disse...

Muito legal essa questão. Nossa, são tantas essas situações. Recordo-me agora do Gullar do poema Cantada: "Você é mais bonita que uma bola prateada de papel de cigarro (...)e quase tão bonita quanto a Revolução Cubana". Ou ainda no poema A Bomba Suja: "Introduzo na poesia/ a palavra diarréia"! Em Manuel de Barros sobejam exemplos, um que sempre me intrigou: "Um caranguejo curto sementava entre arpas". Rs.

Abraço.

Paula: pesponteando disse...

Gerana,

A poesia nos pega por encantamento, por que há nelas algo que nos pertence ou por um certo estranhamento, algo que choca. Quando nada disso acontece, ela passa despercebida.
embora não seja poesia, um texto de Clarice me causou este sentimento, no qual ela falava de baratas. não me lembro o nome do texto.

bjs

Fernando Campanella disse...

Boa noite, Gerana.
Uma lagarta listada,puxa que sensação deve ser para uma criança quando pela primeira vez na vida a observa. Que estranhamento deve ter sido para nós quando nascemos, quando vamos percebendo as cores, os sons, as formas desse universo recém-descoberto. E esse estranhamento misto de alumbramento está bem guardado lá nas profundezas nossas.Então, acredito que a poesia e a arte em geral conseguem resgatar, em parte, o alumbramento, as sensações básicas porque servem-se dos canais da intuição. Veja os versos do Pessoa, os trabalhos de Chagall, por exemplo, o que seria aquilo, senão um universo de estranhamento, e ainda maravilhoso. Magia do inconsciente espelhando-se na arte.
Grande abraço.

José Carlos Brandão disse...

Gosto demais do Namorados, de Bandeira. E a "noiva verde" é uma achado.